A Bíblia Sagrada

~ segunda-feira, 11 de outubro de 2010


Há mais ou menos quatro mil anos, vários povos viviam às margens do Mediterrâneo, na Ásia e na África. Havia duas grandes potências: Caldéia e Egito. Diversas tribos viviam aí da cultura agrícola e de produtos de seus rebanhos, entre as quais se achava a dos hebreus , que provinham do patriarca Abraão. Este homem e sua família eram oriundos de Ur, da Caldéia, de onde tinham emigrado para a Palestina.
Com a vinda de Abraão e de seus descendentes, começa a História Santa que a Bíblia nos conservou.

PENTATEUCO

Pentateuco é uma palavra derivada do grego e significa «cinco livros» Essa palavra é usada para indicar os cinco primeiros livros da Bíblia, isto é: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Os judeus chamam essa parte da Bíblia com o nome de Torá, que significa Lei.

Nesses cinco livros encontramos histórias e leis que foram postas por escrito durante seis séculos, reformulando, adaptando e atualizando tradições antigas e criando novas. Tanto as histórias como as leis giram em torno de um centro: o ato libertador de Deus no êxodo, que é o ato fundante do povo de Israel.

As histórias aí contidas, na sua maioria, nasceram no meio do povo e, primeiramente, eram histórias de famílias, de clãs e de tribos que procuravam transmitir oralmente, de geração em geração, ensinamentos e fatos. Mais tarde essas histórias foram reunidas, modificadas e interpretadas para que todo o povo de Israel pudesse se espelhar nelas e para que elas expressassem a fé em Javé, o Deus que liberta.

As leis pertencem a várias épocas e são diretivas para o povo nas diversas etapas da sua história. Todas elas, porém, procuram, em circunstâncias diferentes, conduzir a uma prática que reflita o ideal proposto pelas normas básicas do projeto de Deus: a libertação do povo e a formação de uma sociedade onde haja liberdade e vida para todos. Essas leis, portanto, não são perenes e intocáveis, mas expressam um momento determinado da vida, com os conflitos que existiam dentro do povo de Deus; mais do que serem aplicadas diretamente à nossa realidade, elas servem de exemplo e modelo para que aprendamos a discernir as situações e criar uma legislação que responda às necessidades do povo, conforme o projeto de Deus. Não podemos esquecer, porém, que a lei deve servir ao povo e não ser instrumento de opressão contra o povo: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado» (Mc 2,27). Jesus, que veio trazer a libertação e a vida em plenitude, não aboliu, mas mostrou o verdadeiro espírito dessas leis (cf. Mt 5,17). Ele próprio apresentou um resumo de toda a Lei: «Tudo o que vocês desejam que os outros façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consistem a Lei e os Profetas» (Mt 7,12).


LIVROS HISTÓRICOS

Os assim chamados livros históricos ocupam a maior parte do Antigo Testamento. Neles encontramos a história de Israel e do judaísmo, desde a conquista da terra prometida até quase a época do Novo Testamento. É interessante notar que não se trata apenas de registro cronístico de fatos, mas de uma interpretação de acontecimentos a partir da fé, e a serviço dos problemas e interesses de situações bem determinadas. Poderemos dividir esse conjunto em quatro grupos:

1. Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis. Formam um relato mais ou menos contínuo, apresentando a história do povo desde a conquista da terra até o exílio na Babilônia. Tais livros mostram que a história de Israel depende da atitude que o povo toma na aliança com Deus. Se o povo é fiel à aliança, Deus lhe concede a bênção, que se concretiza no dom da terra e na prosperidade. Se o povo é infiel, atrai para si mesmo a maldição, que se traduz em fracasso histórico e perda da terra.

2. 1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias. Abarcam o tempo do pós-exílio babilônico até meados do séc. III a.C. A preocupação básica é fundamentar e organiz:ar a comunidade depois do exílio na Babilônia (Esdras e Neemias). Para isso, seus autores repensam toda a história do povo, a fim de fundamentar a vida da comunidade judaica e sua forma de governo, polarizada pelo culto no Templo de Jerusalém (1 e 2 Crônicas).

3. Rute, Tobias, Judite, Ester. Mais do que história propriamente dita, esses livros são narrativas. Sua intenção é apresentar modelos particulares de vivência e aplicação da fé dentro de situações difíceis, principalmente as enfrentadas pelos judeus fora de sua terra.

4. 1 e 2 Macabeus. Relatam a resistência heróica de um grupo de judeus diante da dominação estrangeira que ameaça destruir a identidade cultural e religiosa da comunidade judaica.

 A HISTÓRIA DESDE A CONQUISTA DA TERRA ATÉ O EXÍLIO NA BABILÔNIA

Os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis formam um conjunto coerente, relatando a história do povo desde a conquista da Terra (séc. XIII) até o exílio na Babilônia (586-538 a.C.). A comparação com os temas e o estilo do livro do Deuteronômio mostram que esse relato histórico foi não só influenciado, mas determinado a partir da visão econômica, política, social e religiosa do Deuterônomio. Em outras palavras, o livro do Deuteronômio fornece a chave de leitura para a interpretação dos acontecimentos relatados nessa história.

Essa literatura teve duas redações. A primeira foi feita no tempo do rei Josias, entre 622 e 609 a.C. Nessa época, foi descoberto no Templo o núcleo antigo do livro do Deuteronômio (2Rs 22,8ss). A partir disso, Josias organiza uma grande reforma político-religiosa (2Rs 22-23). Para fundamentar e justificar essa reforma foi escrita uma versão da história, desde o tempo de Salomão até o reinado de Josias. A segunda redação foi feita durante o exílio na Babilônia, provavelmente pouco depois de 561 a.C. (cf. 2Rs 25,27-30 e nota). Foi no contexto do exílio que se redigiu a grande história que vai da conquista até a perda da terra. O que o autor pretendia era não só explicar por que o povo foi exilado, mas, e principalmente, o que o povo deve fazer a partir dessa situação.

O autor se serviu de tradições antigas, talvez já parcialmente escritas, que ele reuniu e interpretou a partir da ideologia do Deuteronômio. Nesse livro se diz que a história depende da fidelidade ou infidelidade do povo à aliança com Javé. Se o povo for fiel, Javé lhe dará a bênção, isto é, uma história marcada pela prosperidade e harmonia em todos os sentidos. Se o povo for infiel, Deus o castigará com a maldição, isto é, com o fracasso histórico, acarretado pela deterioração da vida social em todos os níveis, culminando com a perda da Terra. Tudo isso, de fato, acabou acontecendo.

E agora, tudo perdido? Não! O autor quer mostrar que Javé continua fiel, e que Israel tem pela frente uma grande tarefa: rever a história e descobrir onde estão os erros e por que eles foram cometidos. O sentido dessa história, portanto, não está no seu final, mas dentro do relato, na própria articulação da narrativa. É em Jz 2,6-3,6 que vamos encontrar a articulação dialética com que o autor interpretou a história: pecado e castigo, conversão e graça (cf. Introdução ao livro dos Juízes). Aplicando esse esquema à história, o autor mostra para os exilados que Deus foi fiel à aliança: deu a Terra para que Israel nela construísse uma sociedade e uma história novas. Israel, porém, não foi fiel: esqueceu-se de Javé para servir aos ídolos (pecado). Esse pecado foi cometido durante o regime monárquico, em que os reis traíram o projeto de Javé, servindo a outros projetos. A conseqüência foi uma decadência progressiva da vida social, que acabou acarretando o desastre nacional (castigo). Faltam, agora, os dois momentos finais do esquema dialético: a conversão e a graça.

Podemos dizer que toda essa história foi escrita para produzir esses dois momentos finais. E o autor deixa isso bem claro em passagens importantes de sua narrativa, tais como 1Sm 7,3; 2Rs 17,13; 2Rs 23,25 e, principalmente, 1Rs 8,46-53: se Israel tomar consciência de seus pecados, se se arrepender e sinceramente suplicar a Javé, este lhe concederá a libertação e uma nova situação de graça. Essa mesma exortação ecoa nos acréscimos exílicos ao Deuteronômio (cf. Dt 4,29-31 e 30,1-10).

O conjunto histórico formado por Josué, Juízes, Samuel e Reis, portanto, é um grande «evangelho», um anúncio que procura suscitar conversão e esperança. Para nós ele se torna um convite a também lermos a nossa história através da bênção e da maldição, da fidelidade e da infidelidade ao projeto de Deus. Também nós podemos utilizar o esquema dialético de Jz 2,6-3,6 para rever a nossa história, descobrir os erros que a paralisam e projetar a ação que abre o futuro da esperança.

PRIMEIRO E SEGUNDO SAMUEL

Os livros de Samuel relatam acontecimentos que se situam entre 1040 e 971 a.C. Temos aí uma análise crítica do aparecimento da realeza em Israel, análise que pode ajudar a avaliar nossos sistemas e homens políticos, bem como qualquer outra autoridade.

Em 1Sm temos duas versões do surgimento da autoridade política central: a primeira é contrária e hostil à monarquia (1Sm 8; 10,17-27), representando a visão mais democrática das tribos do Norte, que viviam em terras mais produtivas. A segunda versão é favorável à monarquia (1Sm 9,1-10,16; 11) e representa a visão da tribo de Judá, que vivia em terras menos produtivas. Unindo as duas versões, vemos que a autoridade é um mal necessário (embora justificável, ela pode se absolutizar, explorar e oprimir o povo) e, ao mesmo tempo, um dom de Deus (uma instituição mediadora, que deve re-presentar, isto é, tornar presente o próprio Deus, único rei que liberta e governa o seu povo).

1Sm oferece, portanto, uma visão crítica da autoridade política. Mostra que Deus é o único rei sobre o seu povo. Para ser legítimo, o rei humano (e seus equivalentes) deve ser representante de Deus, isto é, servir a Deus através do serviço ao povo. E isso compreende duas funções:

- função externa: reunir e liderar o povo, auxiliando-o a proteger-se e a libertar-se dos seus inimigos (1Sm 9,16; Sl 110,2);

- função interna: organizar o povo e promover a vida social conforme a justiça e o direito (Sl 72; Dt 17,14-20; Pr 16,12; 29,14).

As duas funções se resumem, portanto, numa dupla relação: obedecer a Deus e servir ao povo. Qualquer autoridade que não obedece a Deus e não serve ao povo é ilegítima e má, pois acaba ocupando o lugar de Deus para explorar e oprimir o povo.

2 Sm está centrado na figura de Davi, cuja história começa propriamente em 1Sm 16, e nas lutas dos pretendentes ao trono de Jerusalém. Podemos dizer que 2 Sm continua a avaliação do sentido e da função da autoridade política.

Davi é apresentado como o rei ideal, que obedece a Deus e serve ao povo. Graças à sua habilidade política, ele consegue aos poucos captar a simpatia das tribos, sendo primeiro aclamado rei de Judá, sua tribo, e depois rei também das tribos do Norte. Após ter conseguido reunir todo o povo, Davi conquista Jerusalém e a torna, ao mesmo tempo, o centro do poder político e da religião de Israel. O ponto mais alto da sua história é a profecia de Natã (2Sm 7), em que o profeta anuncia que o trono de Jerusalém sempre será ocupado por um messias (= rei ungido) da família de Davi. É a criação da ideologia messiânica: o povo será sempre governado por um messias descendente de Davi. Logo depois começa a competição pelo poder e pela sucessão e, finalmente, o trono é ocupado por Salomão que, por si, não era o herdeiro direto (2Sm 9-1Rs 2).

Davi passou para a história como o modelo da autoridade política justa. Por isso, mesmo com o fim da realeza, os judeus permaneceram confiantes no ideal messiânico e ficaram à espera do messias que iria reunir o povo, defendê-lo dos inimigos e organizá-lo numa sociedade justa e fraterna. Dizendo que Jesus é descendente de Davi, os Evangelhos mostram que ele é o Messias esperado (daí o nome grego Cristo = Messias). Ele veio para reunir todos os homens e levá-los à vida plena, na justiça e fraternidade do Reino de Deus.

PRIMEIRO E SEGUNDO REIS

DA GLÓRIA À RUÍNA

Os livros dos Reis relatam acontecimentos que vão de 971 a 561 a.C., continuando a história da monarquia iniciada com Saul e Davi. Depois de Salomão, o império se divide (931 a.C.) em dois reinos: o reino de Israel, com sede em Samaria, que caiu em poder da Assíria em 722 a.C., e o reino de Judá, com sede em Jerusalém, que caiu em poder da Babilônia em 586 a.C. Mais do que uma relação pormenorizada de acontecimentos, estes livros fornecem uma reflexão crítica sobre a história do povo e dos reis que o governaram: a fidelidade a Deus leva à bênção e à prosperidade; a infidelidade leva à maldição, à ruína e ao exílio (cf. 2Rs 17,7-23).

No início, encontramos de novo uma teologia da autoridade política: o rei deve ser fiel a Deus (1Rs 2,3) e governar com sabedoria e justiça, servindo o povo (1Rs 12,7), que pertence unicamente a Deus (1Rs 3,8-9). Mas os reis são sempre infiéis, pois fazem «o que Javé reprova»: praticam a idolatria; «vendem» a nação para os estrangeiros; perseguem os profetas; dividem, exploram e oprimem o povo. Como conseqüência, Israel e Judá são levados à ruína.

O Templo e o profetismo têm um papel importante nessa história. O Templo é o lugar da reunião de todo o povo para o encontro com Deus, em todas as circunstâncias da vida nacional (1Rs 8). A reforma de Josias procura reunir novamente todo o povo a partir do culto no Templo (2Rs 22-23). Os profetas são aqueles que mantêm viva a consciência do povo, os vigias das relações sociais e os grandes críticos da ação política dos reis. Sua intenção de fazer respeitar a justiça e o direito está sempre em primeiro plano, e eles se ocupam tanto de religião como de moral e política, pois tudo deve estar submetido a Deus, o único rei sobre o povo (cf. Is 6,5; 44,6; Zc 14,16).

As decepções com a monarquia se multiplicaram e, com a queda dos reinos de Israel e de Judá, volta o antigo ideal igualitário das tribos, formulado agora por Jeremias como Nova Aliança: uma sociedade sem mediações, na qual o próprio povo governa a si mesmo, graças ao conhecimento de Deus (Jr 31,31-34). De fato o poder pertence à essência de Deus, e não à essência da humanidade. A humanidade é formada de pessoas relativas, isto é, de seres que se descobrem, se desenvolvem e se realizam dentro de relações que, para serem verdadeiramente humanas, devem ser de partilha e fraternidade.

A Bíblia mostra que o Reino de Deus, sempre vindono horizonte da história, é o advento da humanidade unida e democrática, onde não há mais pobres e ricos, nem fracos e poderosos, e sim a partilha e a fraternidade. O sentido último da existência de qualquer autoridade é servir ao advento do Reino de Deus, o que significa também ter a vocação de diminuir-se a si mesma, até tornar-se desnecessária e desaparecer. A marcha da história caminha para a comunhão e a partilha entre os homens, e todas as formas de absolutismo significam uma regressão no processo histórico. Regressão voltada para o fracasso, pois a história caminha para a meta que Deus fixou: o Reino.


A HISTÓRIA DESDE ADÃO ATÉ A FUNDAÇÃO DO JUDAÍSMO

Os dois livros das Crônicas, juntamente com os livros de Esdras e Neemias, formam um conjunto coerente elaborado provavelmente nos inícios do séc. IV a.C. Temos aqui um grande conjunto narrativo, que vai desde Adão até a organização da comunidade judaica depois do exílio na Babilônia (por volta de 400 a.C.). Essa história pode ser dividida em três grandes partes:

- 1Cr 1-9: História de Adão até Saul, cuja seqüência é construída graças a árvores genealógicas, elaboradas a partir de tradições antigas, de palavras de profetas e material acrescentado pelo próprio autor.

- 1Cr 10-2Cr 36: História da monarquia, desde Davi até Sedecias. O autor parece repetir as narrativas dos livros de Samuel e Reis. A leitura atenta, porém, mostra que ele recorre a outras fontes.

- Esdras e Neemias: História dos repatriados, desde o retorno do exílio até o ano 400 a.C. O autor se preocupa em mostrar os problemas dos judeus repatriados e a ação de Neemias e Esdras para organizar a comunidade judaica.

O conjunto dessa história procura mostrar o estatuto da comunidade judaica, reunida em Jerusalém e centrada no culto e na lei. Sob o domínio persa, os judeus agarram a única possibilidade que lhes resta para recuperar e preservar a sua identidade como povo: a tradição religiosa dos antepassados, que agora se transforma em lei. No contexto pós-exílico, o Templo passa a ser o centro da vida da comunidade, como lugar de culto e da transmissão da lei, que fornecem a estrutura social da comunidade.

O autor, porém, não pretende apenas narrar a história dos judeus. Ele quer discutir e abrir perspectivas sobre a estrutura da própria comunidade judaica. Questão central é o problema da liderança que vai governar. Como os judeus só podem se estruturar a partir da religião, é natural que os sacerdotes detenham a liderança. Resta, porém, uma pergunta: Qual é o sacerdócio legítimo? Os descendentes do levita Aarão ou os descendentes de Sadoc? No exílio, os sacerdotes tinham elaborado complicadas genealogias para ligar Sadoc a Aarão, resolvendo assim a questão da legitimidade em favor dos descendentes de Sadoc. Diante disso, fica outra pergunta: E os levitas, descendentes diretos de Aarão? Desde o tempo de Salomão, eles tinham sido expulsos de Judá e passaram a exercer suas atividades entre as tribos do Norte, que formaram o reino de Israel. Ligados aos profetas, eles preservaram e produziram tradições que formaram o livro do Deuteronômio, o qual influenciou grandes reformas no reino de Judá. Depois do exílio, esses levitas se viram reduzidos a meros empregados dos sacerdotes.

O autor, muito provavelmente levita, produz toda essa literatura para reabilitar historicamente a figura do levita e, assim, reivindicar sua importância ao lado do sacerdócio para o governo da comunidade. É nesse sentido que podemos interpretar a expressão «aliança dos sacerdotes e levitas» em Ne 13,29 e a insistência contínua do autor em mostrar a importância do levitismo em toda a sua versão da história.

É claro que o autor não quer apenas arrumar emprego para os levitas. O que ele pretende é preservar a tradição profética, conservada pelos levitas, a fim de que a comunidade judaica não fique reduzida ao culto formal, mas seja capaz de se organizar socialmente, segundo o projeto de Javé, dentro da legítima tradição do Êxodo. É inegável que essa tradição foi transmitida pelos levitas, que procuravam atualizá-la e aplicá-la às situações concretas, visando sempre em primeiro lugar à causa do povo e à defesa de uma sociedade justa e igualitária. Podemos, portanto, dizer que essa obra histórica é uma grande reivindicação para a reabilitação daqueles que se colocam como defensores dos interesses do povo, protegendo-o de possíveis arbitrariedades, tanto internas como externas.




PRIMEIRO E SEGUNDO CRÔNICAS

REVISÃO DA HISTÓRIA DO POVO

Quando o autor escreveu os livros das Crônicas, já existia a grande história, formada pelos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. Bastaria acrescentar alguns capítulos sobre a volta do exílio e a vida da comunidade até o início do séc. IV a.C. O autor, porém, tinha sérios motivos para apresentar outra versão de toda a história do seu povo (cf. «A história desde Adão até a fundação do judaísmo»).

À primeira vista, sua história parece repetição de narrações já existentes. A leitura atenta, porém, perceberá muitas diferenças, devidas à exclusão de materiais, ao acréscimo de outros e, muitas vezes, manipulações sutis dos relatos. O que o autor pretende é reconsiderar o passado, a partir da situação da comunidade judaica do seu tempo. Assim, a personagem principal dessa história é o Templo e os sacerdotes e levitas que nele exercem suas funções; os sacerdotes com o culto e os levitas com a transmissão das legítimas tradições do povo. É fácil perceber que toda a história precedente atinge seu ápice no Templo e que dele dependem todas as reformas político-religiosas posteriores; os reis são julgados a partir de suas relações com o Templo e o culto de Javé. Além disso, toda a história do reino do Norte é omitida, pois no tempo do autor os samaritanos eram inimigos acirrados da organização da comunidade judaica centrada em Jerusalém.

Ponto importante é a atenção especial que se reserva aos levitas, nas listas genealógicas e na narrativa propriamente dita. Os levitas pontilham essa história com sua presença, palavra e ideologia. É a maneira que o autor, certamente um levita, encontra para recuperar as tradições das tribos do Norte, que haviam mais bem conservado os ideais democráticos e igualitários. Como os levitas eram muito ligados aos círculos proféticos do Norte, encontramos muitas menções de profetas e o título de profeta é dado até mesmo ao levita (cf. 1Cr 25,1-5). Essa é uma diferença essencial com a história narrada nos livros dos Reis, onde o levita Abiatar e com ele certamente o levitismo foi expulso de Jerusalém por Salomão (cf. 1Rs 2,26-27, passagem que o autor de Crônicas omite).

Os livros das Crônicas, portanto, oferecem uma versão da história que reivindica e justifica a função do levita na liderança da comunidade judaica. Graças a ele, os ideais do êxodo e de uma sociedade igualitária permanecem vivos, à espera de uma ocasião histórica propícia que torne possível a sua concretização.



ESDRAS E NEEMIAS

 ORGANIZAÇÃO DA COMUNIDADE

Os livros de Esdras e Neemias continuam a história de Israel, relatando os acontecimentos entre 538 e 400 a.C. O tema central é a organização da comunidade, que se formou a partir da volta dos judeus exilados na Babilônia.

No início, tratava-se de um livro único, mais tarde separado em duas partes, denominadas 1° e 2° de Esdras. Depois, o segundo recebeu o nome de Neemias. Em conjunto, os vinte e três capítulos não se encontram na ordem cronológica e literária original. Em vista dessa dificuldade, é interessante ler todo o texto conforme a seguinte cronologia:

586: Exílio na Babilônia

539: Ciro, rei da Pérsia, conquista a Babilônia

538: Edito de Ciro, permitindo a repatriação dos exilados (2Cr 36; Esd 1)

537: Primeiro grupo de repatriados com Sasabassar; recomeça o culto (Esd 2-3)

536: Preparativos para a reconstrução do Templo; obstáculos internos e externos (Esd 4-5)

520: Atividade dos profetas Ageu e Zacarias

518: Obras do Templo interrompidas e retomadas (Esd 5-6)

515: Dedicação do Templo (Esd 6)

448: Uma colônia de judeus muda para Jerusalém (Esd 4,8-22)

445: Neemias vai para Jerusalém; construção da muralha (Ne 1-2). Neemias é nomeado governador (Ne 5,14)

433: Neemias volta para Susa (Ne 13). Atividade do profeta Malaquias

430: Neemias e Esdras em Jerusalém; leitura da lei; reformas (Ne 8-10; 13)

429: Artaxerxes autoriza Esdras a promulgar a Lei (Esd 7-8)

428: Reformas de Esdras (Esd 9-10).

423-404: Os samaritanos constroem um templo no monte Garizim.

Embora sua leitura implique dificuldades, os livros de Esdras e Neemias mostram como um grupo se reúne e se organiza para formar comunidade. Certamente, o grupo deverá enfrentar dificuldades econômicas para sobreviver, políticas para constituir o seu espaço e ideológicas para manter a própria identidade original. Na confluência dessas três dificuldades está a espinhosa questão da liderança, para que a comunidade não fique entregue ao arbítrio dos poderosos internos ou externos, mas tenha meios de resolver seus conflitos, defender seus direitos e abrir perspectivas para o futuro.

OUTROS LIVROS HISTÓRICOS

Os livros de Tobias, Judite, Ester e 1-2 Macabeus formam um conjunto que não se encaixa na história antes do exílio nem imediatamente após. A rigor, só poderíamos considerar histórico o primeiro livro dos Macabeus.

Tobias, Judite e Ester são novelas ou romances. Não refletem acontecimentos históricos. Querem mostrar situações típicas dos judeus na Palestina (Judite) ou fora (Tobias e Ester). No entanto, por trás da ficção, apresentam profunda análise da situação histórica e das possibilidades que os judeus encontraram em determinado contexto. Embora não sejam história propriamente dita, servem de modelo para analisar em profundidade certas situações reais.

Os dois livros dos Macabeus apresentam os acontecimentos que se desenvolveram entre 175 e 134 a.C. O primeiro, mais sóbrio e abrangente, relata os fatos a partir do ponto de vista mais objetivo e segue uma cronologia ordenada. O segundo se limita a poucos fatos entre 175 e 161 a.C., com a intenção de mostrar o significado religioso da resistência judaica. Seu estilo é de crônica elogiosa sobre os heróis da fé, mostrando as bases para uma reflexão sobre o martírio.

LIVROS SAPIENCIAIS

 «Sapienciais» é o nome dado a cinco livros do Antigo Testamento: Provérbios, Jó, Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria. A esses são acrescentados dois livros poéticos: Salmos e Cântico dos Cânticos. Esses livros apresentam a sabedoria e a espiritualidade de Israel.

Em Israel, a sabedoria não é a cultura conseguida graças à acumulação de conhecimentos, mas o bom senso e o discernimento das situações, adquiridos através da meditação e reflexão sobre a experiência concreta da vida. Trata-se de algo que se aprende na prática e que leva à arte de viver bem. Assim, nos livros sapienciais encontramos reflexões que brotam dos muitos problemas que povoam o dia-a-dia da vida de qualquer pessoa que busca o caminho da realização e felicidade.

A sabedoria de cunho mais popular que encontramos no livro dos Provérbios e no Eclesiástico apresenta-se em forma de coleção de frases curtas, sentenças que ajudam a compreender e a encontrar uma saída nas diversas situações enfrentadas pelo homem comum. Já os livros de Jó, Eclesiastes e Sabedoria são estudos sobre problemas mais profundos e globais, como o sentido da vida, a morte, a justiça, a vida social, o mal, a natureza da sabedoria etc. O Cântico dos Cânticos trata da experiência mais fundamental da vida: o amor humano, símbolo do amor de Deus para com o seu povo.

A espiritualidade de Israel é apresentada no livro dos Salmos, uma coleção de 150 orações que refletem as mais diversas situações da vida do indivíduo e do povo. São verdadeiros modelos para aprendermos a fazer a nossa oração.

Os livros sapienciais mostram que a experiência comum do povo também é lugar da manifestação de Deus e da revelação do seu projeto: Deus fala através da experiência do povo. Estes livros, portanto, trazem o convite para também hoje darmos atenção a nossa vida cotidiana, a fim de aprendermos a articular nossa experiência da vida e da história.


LIVROS PROFÉTICOS

 Pela sua coragem de questionar a situação presente e vislumbrar um futuro diferente para o seu povo, os profetas sempre exerceram atração fascinante. Muitos chegam até a confundir profeta com adivinhador do futuro. Outros chegam a pensar que eles ensinavam coisas absolutamente novas. O verdadeiro profeta, no entanto, é aquele que preserva a tradição autêntica do seu povo, perdida ou deformada em meio a tantas «tradições» criadas para defender interesses, legitimar poderes e sustentar sistemas. O núcleo central da tradição autêntica é a fé exodal, ou seja, o reencontro com o verdadeiro Deus revelado a Moisés: «Eu sou Javé seu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da escravidão» (Ex 20,2; Dt 5,6). Portanto, profeta é aquele que se inspira na ação libertadora do Deus do êxodo e, a partir daí, analisa a situação presente e mostra o projeto de Deus para o futuro do seu povo.

As atividades do profeta variam de acordo com seus ouvintes e com o momento histórico em que ele vive. Cada profeta tem o seu estilo próprio, e pronuncia anúncios e denúncias diante de situações bem determinadas. No entanto, podemos perceber duas grandes vertentes na atividade dos profetas:

- Exigência de conversão, para mudar o sistema social, a fim de que o julgamento de Deus não recaia sobre o povo. Esse tema é predominante nos profetas que exerceram sua atividade antes do exílio na Babilônia.

- Anúncio de esperança, para encorajar e estimular o povo, que tinha perdido sua terra e corria o perigo de perder a própria identidade. Esse anúncio fazia retomar a caminhada da reconstrução, recuperando a fé em Javé e os valores históricos alcançados em nome dessa mesma fé.

Os livros proféticos testemunham a vida e atividade de homens que possuem fé profunda e vigorosa; homens que procuram levar o povo a um relacionamento sempre renovado e responsável com o Deus que julga e salva.

A literatura profética pode ser dividida de várias maneiras. A mais tradicional e comum é a divisão em profetas maiores e profetas menores. Não porque uns sejam mais importantes que outros, mas simplesmente pela extensão de seus escritos. Os profetas maiores são quatro: Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel. Os menores são treze: Baruc, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

NOVO TESTAMENTO


O Novo Testamento ou Nova Aliança é a parte da Bíblia onde encontramos o anúncio da pessoa de Jesus Cristo. Sua mensagem central é o próprio Filho de Deus, que veio ao mundo para estabelecer a aliança definitiva entre Deus e os homens. Sendo Deus-e-Homem, o próprio Jesus é a expressão total dessa aliança: ele mostra que Deus é Pai para os homens, e como os homens devem viver para se tornarem filhos de Deus.

Através de sua palavra e ação, Jesus inaugurou a nova aliança ou, em outras palavras, o Reino de Deus. Esse Reino não é mais aliança com um povo só. É aberto a todos os homens, todos os povos de todos os tempos e lugares. Em Jesus, Deus quer reunir toda a humanidade como uma família em que todos são chamados a viver como irmãos, repartindo entre si todas as coisas. Essa grande reunião, onde tudo é partilha e fraternidade no amor, é o Reino de Deus que, semeado na história, vai crescendo até que se torne realidade para todos.

Jesus não deixou nada escrito. Ele pregou, ensinou e praticou o projeto de Deus. Isso fez com que ele entrasse em conflito com a estrutura da sociedade, que o perseguiu, prendeu e matou. Mas Jesus ressuscitou, enviou o Espírito aos seus seguidores, chamados apóstolos e discípulos, e eles continuaram sua missão pregando, ensinando e fazendo como Jesus fazia. Foram eles que escreveram o que encontramos no Novo Testamento. Não pretenderam fazer uma biografia de Jesus, nem história ou crônica da ação dos seguidores dele. Quiseram, em primeiro lugar, anunciar Jesus para que os homens tivessem fé e se comprometessem com Jesus. Fé e compromisso que significam continuar sua palavra e ação, constituindo o Reino.

O Novo Testamento agrupa vinte e sete livros, conforme temas e estilos diferentes: Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Cartas e Apocalipse.

Os evangelhos são quatro formas de anunciar Jesus, escritas no ambiente de comunidades diferentes. Por isso tratam da pessoa, das palavras e das ações de Jesus de modo ao mesmo tempo semelhante e diferente. Não são biografia ou história, e sim um anúncio para levar à fé em Jesus, isto é, ao compromisso de continuar sua obra, pela palavra e ação.

Os Atos dos Apóstolos são a segunda parte do evangelho de são Lucas. Mostram como o anúncio de Jesus e a formação das comunidades cristãs se expandiram, chegando a Roma, centro do mundo naquela época. Aí vemos o sentido da missão cristã: levar a boa nova do Evangelho a todos os homens, para que todos possam tomar conhecimento de Jesus e pertencer ao povo de Deus.

As cartas ou epístolas são escritos dirigidos às primeiras comunidades cristãs. Elas não só nos dão uma idéia dos problemas dessas comunidades, mas nos ajudam também a ver e superar os problemas em nossas comunidades atuais.

O Apocalipse de são João é livro escrito em linguagem figurada, porque se dirige aos cristãos em tempo de perseguição. Apresenta Jesus Ressuscitado como Senhor da história, e mostra como os cristãos devem anunciá-lo e testemunhá-lo sem medo, enfrentando até mesmo a própria morte.



A PALESTINA NO TEMPO DE JESUS

É difícil tirar todo o proveito da leitura dos Evangelhos, se não conhecermos alguma coisa da terra, ambiente e mecanismos da sociedade em que Jesus viveu, há dois mil anos. Isso porque a encarnação do Filho de Deus aconteceu em tempo e lugar determinados, dentro de circunstâncias precisas e bem concretas. Assim, conhecer o contexto em que Jesus viveu não é apenas questão de cultura, mas também, e principalmente, dado necessário para conhecer e avaliar com mais objetividade o que significou a vida, palavra e ação de Jesus. Só assim poderemos perceber melhor o que sua vida, palavra e ação podem significar hoje, no contexto em que vivemos.



A. A TERRA DE JESUS

Jesus viveu na Palestina, pequena faixa de terra com área de 20 mil km2 , com 240 km de comprimento e máximo de 85 km de largura. Corresponderia aproximadamente à área do Estado de Sergipe. Do lado oeste, temos o mar Mediterrâneo. A leste, o rio Jordão.

A Palestina é dividida de alto a baixo por uma cadeia de montanhas que muito influi no seu clima. Com efeito, na parte oeste, o vento frio do mar, ao chocar-se com a parte montanhosa, provoca chuvas freqüentes, beneficiando toda a faixa costeira. O lado leste das montanhas, porém, não recebe o vento do mar e, conseqüentemente, apresenta clima quente e região mais árida. As terras cultiváveis estão na parte norte, na região da Galiléia e no vale do rio Jordão. A região da Judéia é montanhosa e se presta mais como pasto de rebanhos e cultivo de oliveira.

A cidade de Jerusalém conta com +/-- 50 mil habitantes, e está situada no extremo de um planalto, a 760 m acima do nível do mar Mediterrâneo e 1.145 m acima do nível do mar Morto. Por ocasião das grandes festas, chega a receber 180 mil peregrinos.



B. A SOCIEDADE DO TEMPO DE JESUS

Toda sociedade humana é formada por pessoas e grupos de pessoas unidas entre si por uma rede complexa de relações econômicas, políticas e ideológicas. Para situarmos a pessoa e a ação de Jesus, é necessário examinar as relações sociais que existiam na sociedade daquele tempo.


I. Economia

As atividades que formam a base da economia no tempo de Jesus são duas: a agricultura e a pecuária (junto com a pesca) de um lado, e o artesanato, de outro.

A agricultura é desenvolvida principalmente na Galiléia. Cultivam-se trigo, cevada, legumes, hortaliças, frutas (figo, uva), oliveiras. Das árvores de Jericó, na Judéia, extrai-se bálsamo para perfumes. A pecuária efetua-se principalmente na Judéia: criação de camelos, vacas, ovelhas e cabras. A pesca é intensa no mar Mediterrâneo, no lago de Genesaré e no rio Jordão.

Na agricultura, a maior parte da população é formada por pequenos proprietários. Ao lado desses, existem os grandes proprietários (anciãos) que geralmente vivem na cidade, deixando a direção de suas propriedades a cargo de administrador, e empregando a força de trabalho de diaristas e escravos. Muitas vezes, sucede que os pequenos proprietários em apuros financeiros tomam dinheiro emprestado dos grandes, e vêem seus bens hipotecados. Isso favorece cada vez mais o acúmulo de terras nas mãos de algumas famílias ricas. Por fim, existem os camponeses sem propriedades, que arrendam terras e trabalham como meeiros.

O artesanato desenvolve-se nas aldeias e nas cidades, principalmente em Jerusalém. Os ramos principais dessa atividade são: cerâmica (vasilhames e artigos de luxo), trabalho de couro (sapatos, peles curtidas), trabalho de madeira (carpintaria), fiação e tecelagem, aproveitando a lã de carneiros, abundantes na Judéia. O artesanato de luxo se concentra em Jerusalém, e serve para ser vendido como lembrança aos peregrinos.

Esse trabalho é feito por autônomos, estruturados em torno de produção familiar, em que o ofício passa de pai para filho. Há também pequenas unidades artesanais, que reúnem número significativo de operários. Junto com os trabalhadores do campo, esses artesãos formam a mais importante classe trabalhadora da Palestina.

Além desses artesãos, há também padeiros, barbeiros, açougueiros, carregadores de água e escravos que trabalham tanto em atividades produtivas como em outros ofícios.

A circulação de toda mercadoria produzida, tanto na agricultura como no artesanato, forma outra grande atividade econômica: o comércio. Este se desenvolve mais nas cidades e está na mão dos grandes proprietários de terras. Nos povoados, o comércio é reduzido e o sistema é mais de troca.

Toda a atividade comercial é controlada por um sistema de impostos. Essa política fiscal faz com que tanto o Estado judaico como o Estado romano se tornem monopolizadores da circulação das mercadorias, o que proporciona vultosas arrecadações. Esses impostos são cobrados pelos publicanos (cobradores de impostos). Há também taxas para transportar mercadorias de uma cidade para outra e de um país para outro. Esses impostos e taxas se tornam insuportáveis no tempo de Jesus.

Por essa visão geral da economia da Palestina já podemos perceber: Jesus é artesão (carpinteiro), vários discípulos são pescadores e um deles é cobrador de impostos.

O aparelho de Estado em Jerusalém exerce forte controle sobre a economia de todo o país. Além de pólo de atração da capital nacional, o Estado é o maior empregador (restauração do Templo, construção de palácios, monumentos, aquedutos, muralhas etc.). Nisso tudo, o Templo tem papel central:

- Coleta de impostos, através da qual boa parte da produção do país volta para o Estado.

- Comércio: para atender à necessidade dos peregrinos e, principalmente, para manter o sistema de sacrifícios e ofertas do próprio Templo.

- O Tesouro do Templo, administrado pelos sacerdotes, é o tesouro do Estado.

Além de toda essa centralização econômica, o Templo emprega mão-de-obra qualificada, principalmente artesãos.

Assim, o Templo se torna o grande centro de exploração e dominação do povo.

Mas a exploração e dominação não se restringem à economia interna, pois a Palestina é colônia do império romano. Este também cobra uma série de impostos: o tributo (imposto pessoal e sobre as terras), uma contribuição anual para o sustento dos soldados romanos que ocupam a Palestina, e um imposto sobre a compra e venda de todos os produtos.

II. Política

O poder efetivo sobre a Palestina está nas mãos dos romanos. Mas, em geral, estes respeitam a autonomia interna das suas colônias. A Judéia e a Samaria são dirigidas por um procurador romano, mas o sumo sacerdote tem poder de gerir as questões internas, através da lei judaica. Este, porém, é nomeado e destituído pelo procurador romano.

O centro do poder político interno da Judéia e Samaria é a cidade de Jerusalém e o Templo. Com efeito, é do Templo que o sumo sacerdote governa, assessorado por um Sinédrio de 71 membros, composto de sacerdotes, anciãos e escribas ou doutores da Lei. O Sinédrio é o Tribunal Supremo (criminal, político e religioso) e sua influência se estende sobre todos os judeus, mesmo os que vivem fora da Palestina.

Nas cidades também existe pequeno aparato político (conselhos locais), dominado de início pelos grandes proprietários de terras e, mais tarde, pelos escribas ou doutores da Lei. Da mesma forma, nos povoados encontramos um conselho de anciãos, que se reúne tanto para decidir sobre questões comunitárias, como para casos de litígio ou transgressão de lei, funcionando como tribunal. Além disso, no campo, as relações de autoridade permanente são as relações familiares.

 III. Grupos político-religiosos

Na sociedade do tempo de Jesus podemos distinguir vários grupos, que se diferenciam no modo de se relacionar com a política, economia e religião, e que têm grande importância no quadro social da época.

1. Saduceus

O grupo dos saduceus é formado pelos grandes proprietários de terras (anciãos) e pelos membros da elite sacerdotal. Têm o poder na mão, e controlam a administração da justiça no Tribunal Supremo (Sinédrio). Embora não se relacionem diretamente com o povo, são intransigentes em relação a ele, e vivem preocupados com a ordem pública. São os principais responsáveis pela morte de Jesus.

Os saduceus são os maiores colaboradores do império romano, e tendem para uma política de conciliação, com medo de perder seus cargos e privilégios. No que se refere à religião, são conservadores: aceitam apenas a lei escrita e rejeitam as novas concepções defendidas pelos doutores da Lei e fariseus (crença nos anjos, demônios, messianismo, ressurreição).



2. Doutores da Lei (escribas)

O grupo dos doutores da Lei vai adquirindo cada vez maior prestígio na sociedade do tempo. Seu grande poder reside no saber. Com efeito, são os intérpretes abalizados das Escrituras, e daí serem especialistas em direito, administração e educação. A influência deles é exercida principalmente em três lugares: Sinédrio, sinagoga e escola. No Sinédrio, eles se apresentam como juristas para aplicar a Lei em assuntos governamentais e em questões judiciárias. Na sinagoga, eles são os grandes intérpretes das Escrituras, criando a tradição através da releitura, explicação e aplicação da Lei para os novos tempos. Abrem escolas e fazem novos discípulos.

Embora não pertençam economicamente à classe mais abastada, os doutores da Lei gozam de posição estratégica sem igual. Monopolizando a interpretação das Escrituras, tornam-se guias espirituais do povo, determinando até mesmo as regras que dirigem o culto. Sua grande autoridade repousa sobre uma tradição esotérica: não ensinam tudo o que sabem, e escondem ao máximo a maneira como chegam a determinadas conclusões.

3. Fariseus

Fariseu quer dizer separado. Inicialmente aliados à elite sacerdotal e aos grandes proprietários de terras, os fariseus deles se afastam para dirigir o povo, embora mantenham distância do povo mais simples (que não conhece a Lei). São nacionalistas e hostis ao império romano, mas sua resistência é do tipo passivo. O grupo dos fariseus é formado por leigos provindos de todas as camadas da sociedade, principalmente artesãos e pequenos comerciantes. A maioria do clero pobre, que se opõe à elite sacerdotal, também começa a pertencer a esse grupo.

No terreno religioso, os fariseus se caracterizam pelo rigoroso cumprimento da Lei em todos os campos e situações da vida diária. São conservadores zelosos e também criadores de novas tradições, através da interpretação da Lei para o momento histórico em que vivem. A maior expressão do farisaísmo é a criação da sinagoga, opondo-se ao Templo, dominado pelos saduceus. Desse modo a sinagoga, com a leitura, interpretação dos textos bíblicos e oração, torna-se expressão religiosa oposta ao sistema cultual e sacrifical do Templo.

Os fariseus acreditam na predestinação, na ressurreição e no messianismo. Esperam um messias político-espiritual, cuja função será precipitar o fim dos tempos e a libertação de Israel. Esse messias será alguém da descendência de Davi. E, para os fariseus, a estrita observância da Lei, a oração e o jejum provocarão a vinda do Messias. Os fariseus e os doutores da Lei simpatizam-se, a ponto de muitos doutores da Lei serem também fariseus.

4. Zelotas

Os zelotas se constituíram a partir dos fariseus. Provêm especialmente da classe dos pequenos camponeses e das camadas mais pobres da sociedade, massacrados por um sistema fiscal impiedoso. São muito religiosos e nacionalistas. Desejam expulsar os dominadores pagãos (romanos), e também são contrários ao governo de Herodes na Galiléia. Querem restaurar um Estado onde Deus é o único rei, representado por um descendente de Davi (messianismo). Nesse sentido, os zelotas são reformistas, isto é, pretendem restabelecer uma situação passada.

Enquanto os fariseus se mantêm numa atitude de resistência passiva, os zelotas partem para a luta armada. Por isso, as autoridades os consideram criminosos e terroristas, e são perseguidos pelo poder romano.

Entre os apóstolos de Jesus, provavelmente dois eram zelotas: Simão (Mc 3,19) e Judas Iscariotes. Simão Pedro parece adotar certos métodos dos zelotas.

 5. Herodianos (partidários de Herodes)

Os herodianos são os funcionários da corte de Herodes. Embora não formem um grupo social, concretizam a dependência dos judeus aos romanos. Conservadores por excelência, têm o poder civil da Galiléia nas mãos. Fortes opositores dos zelotas, vivem preocupados em capturar agitadores políticos na Galiléia. São os responsáveis pela morte de João Batista.

6. Essênios

Os essênios se tornaram mais conhecidos a partir da descoberta de documentos em grutas perto do mar Morto, em 1947. O grupo é resultado de fusão entre sacerdotes dissidentes do clero de Jerusalém e de leigos exilados. Na época de Jesus, vivem em comunidades com estilo de vida bastante severo, caracterizado pelo sacerdócio e hierarquia, legalismo rigoroso, espiritualidade apocalíptica e a pretensão de ser o verdadeiro povo de Deus. Em muitos pontos assemelham-se aos fariseus, mas estão em ruptura radical com o judaísmo oficial. Tendo deixado Jerusalém, dirigem-se para regiões de grutas, para aí viverem ideal «monástico». Levam vida em comum, onde os bens são divididos entre todos, há obrigação de trabalhar com as próprias mãos, o comércio é proibido, assim como o derramamento de sangue, mesmo em forma de sacrifícios. A organização da comunidade lembra muito a das ordens religiosas cristãs: condições severas para a admissão, tempo de noviciado, governo hierárquico, disciplina severa, rituais de purificação, ceias sagradas comunitárias. Esperam um messias chamado Mestre da Justiça, que organizará a guerra santa para exterminar os ímpios e estabelecer o reino eterno dos justos.

7. Samaritanos

Apesar de não pertencerem ao judaísmo propriamente dito, os samaritanos são um grupo característico do ambiente palestinense. Mais ainda que os judeus, observam escrupulosamente as prescrições do Pentateuco. Mas eles não aceitam os outros escritos do Antigo Testamento, nem freqüentam o Templo de Jerusalém. Para eles, o único lugar legítimo de culto é o monte Garizim, que fica perto de Siquém, na Samaria. Esperam o messias chamado Taeb (= aquele que volta). Esse messias não é descendente de Davi, e sim novo Moisés, que vai revelar a verdade e colocar tudo em ordem no final dos tempos.

Os samaritanos são considerados pelos judeus como raça impura por serem descendentes de população misturada com estrangeiros.

IV. Religião


A religião dos judeus no tempo de Jesus está centrada em dois pólos fundamentais: o Templo e a sinagoga.

1. O Templo

O Templo é sem dúvida o centro de Israel. É nele que todos os judeus, também os da Dispersão, devem se reunir para prestar culto a Deus. No Templo habita o Deus único, santo, puro, separado, perfeito. Por natureza, os seres humanos e as coisas são profanos, impuros, banais, imperfeitos. A única forma de se purificar é aproximar-se de Deus. O homem se torna mais puro quanto mais perto estiver de Deus; quanto mais distante, mais impuro. Percebe-se, então, o poder dos sacerdotes na sociedade judaica: são eles que estão mais perto de Deus e, conseqüentemente, cabe a eles decidir sobre o que é puro e impuro e também o que fazer para se purificar. Essa autoridade dos sacerdotes sobre o povo acaba legitimando e reforçando o Templo, que se torna não só o centro religioso, mas também o centro econômico e político. É por isso que no tempo de Jesus o Templo possui imensas riquezas (o Tesouro) e toda a cúpula governamental age a partir daí (o Sinédrio). Desse modo, a casa de oração e ofertas a Deus se torna um imenso banco e lugar de poder político. Em outras palavras, a religião se torna instrumento de exploração e opressão do povo.

 2. A sinagoga

O Templo é o centro de toda a vida de Israel. É o lugar de culto e o povo o freqüenta principalmente por ocasião das grandes festas. Na vida comum, o centro religioso é constituído pela sinagoga, presente até mesmo nos menores povoados. Sinagoga é lugar onde o povo se reune para a oração, para ouvir a palavra de Deus e para a pregação.

Qualquer israelita adulto pode fazer a leitura do texto bíblico na sinagoga, e pode escolher o texto que quiser. Depois da leitura, também qualquer adulto pode fazer a pregação, explicando o texto e relacionando-o com outros textos. Em geral, exalta-se a Deus e procura-se dar uma formação para a fé do povo, convidando-o o viver segundo a Lei.

O sacerdote não tem função especial na sinagoga, porque esta não é lugar de culto litúrgico. Embora qualquer adulto possa presidir a uma reunião, nem todos o fazem, por serem analfabetos, ou por não se julgarem preparados para o comentário. As reuniões acabam sendo então sempre animadas pelos doutores da Lei e fariseus, que cada vez mais propagam suas idéias e aumentam sua influência sobre o povo, adquirindo prestígio cada vez maior.

Em geral, a sinagoga pertence à comunidade local. Nos povoados menores, ela serve também como escola para jovens e crianças. Nos centros maiores, constroem-se salas de aula ao lado da sala de reunião. Em Jerusalém, algumas sinagogas tinham até hospedaria e instalações sanitárias para os peregrinos.

*

Jesus nasceu, viveu e morreu dentro do contexto histórico do séc. I. Quando lemos o texto dos Evangelhos, devemos estar atentos para avaliar corretamente a sua atividade dentro da formação social, econômica, política e religiosa do seu tempo. Só assim a palavra e a ação de Jesus adquirem o relevo concreto para que nós as entendamos melhor e possamos transpor toda a significação que há na pessoa de Jesus para os nossos dias. Não se trata de reduzir toda a mensagem de Jesus ao nível sociopolítico. Mas nem de cair no oposto, reduzindo a mensagem de Jesus ao nível individual e intimista.


Trabalho de Pesquisa do Irmão
Carlos Gabriel Rachid Lacerda.

Fonte Bibliográfica
Bíblia Católica Editora Paulus.



1 Comentários:

Anônimo disse...

obrigada pela linda coletanea de informacoes

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